Novos insights sobre a liberação de endocanabinoides: O papel das microvesículas e o modelo de liberação sob demanda

  • Redação
Atualizado: 31 maio, 2025 20:11
<p><strong>Por Luzia Sampaio</strong></p><figure class="image image_resized image-style-align-left" style="width:50%;"><img src="https://sechat-images.s3.amazonaws.com/Luzia_Sampaio_71d9241796.jpg" alt="Luzia Sampaio_.jpg" srcset="https://sechat-images.s3.amazonaws.com/thumbnail_Luzia_Sampaio_71d9241796.jpg 156w, https://sechat-images.s3.amazonaws.com/small_Luzia_Sampaio_71d9241796.jpg 500w, https://sechat-images.s3.amazonaws.com/medium_Luzia_Sampaio_71d9241796.jpg 750w" sizes="100vw" width="750"><figcaption>Luzia Sampaio é farmacêutica e pesquisadora da UFRJ | Foto: Reprodução LKD</figcaption></figure><p>A comunicação intercelular no sistema nervoso é um processo dinâmico e essencial para a regulação de inúmeras funções fisiológicas. Enquanto a neurotransmissão clássica envolve a síntese, armazenamento em vesículas sinápticas e liberação rápida de mensageiros como dopamina ou serotonina, o sistema endocanabinoide opera de maneira distinta. Endocanabinoides, como o 2-araquidonilglicerol (2-AG), são compostos lipídicos que não são armazenados em vesículas sinápticas da mesma forma que os neurotransmissores tradicionais. Em vez disso, sua produção e liberação ocorrem de forma "sob demanda", ativadas por estímulos específicos no momento e local necessários. Dada a natureza lipídica desses mensageiros, o mecanismo preciso pelo qual eles deixam a célula produtora e atravessam o ambiente extracelular para interagir com células-alvo tem sido uma área de intensa investigação. O artigo "The endocannabinoid 2-arachidonoylglycerol is released and transported on demand via extracellular microvesicles", publicado na revista PNAS em 2025, apresenta descobertas que lançam uma nova luz sobre este fundamental processo biológico.</p><p>O principal objetivo deste estudo foi justamente desvendar o mecanismo molecular por trás da liberação e transporte do 2-AG. Os pesquisadores já suspeitavam que as microvesículas extracelulares poderiam desempenhar um papel crucial nesse processo. A ideia era testar se a formação e liberação dessas microvesículas, contendo 2-AG em sua estrutura, seria a forma como esse endocanabinoide viaja pelo espaço extracelular. Essa hipótese buscava unificar diferentes ideias sobre como os endocanabinoides se movem, incluindo o transporte dentro da célula, a liberação via vesículas e a movimentação através da membrana celular.</p><p>Essas microvesículas extracelulares (MVs) representam um tipo de vesícula liberada pelas células, fundamentalmente distintas das vesículas sinápticas clássicas. Enquanto as vesículas sinápticas são especializadas no armazenamento e liberação de neurotransmissores polares, liberados por fusão com a membrana celular na sinapse, as microvesículas se formam diretamente por brotamento da membrana plasmática e transportam uma variedade de moléculas, incluindo lipídios como o 2-AG, que se integram à sua estrutura membranar. O processo de liberação das MVs, que envolve a fissão da membrana, difere significativamente da liberação vesicular sináptica, indicando um mecanismo de comunicação celular paralelo e especializado, particularmente relevante para o transporte eficiente de mensageiros lipídicos através do espaço sináptico.</p><p>Para investigar a hipótese de que endocanabinoides eram liberados em microvesículas, a equipe de pesquisa utilizou uma metodologia engenhosa e inovadora. Eles realizaram experimentos utilizando um sistema de co-cultura, onde cultivaram dois tipos de células juntas. Um tipo de célula neural (Neuro2A) funcionava como a "remetente", capaz de produzir 2-AG quando estimulada, via receptor P2X7. O outro tipo (HEK293T) funcionava como a "receptora", equipada com um sensor fluorescente especial (GRABeCB2.0) que acende quando o receptor CB1 é ativado. Isso permitiu observar em tempo real a liberação e o transporte do 2-AG. Eles também testaram diversas substâncias para ver quais "bloqueavam" esse sinal, investigando as vias moleculares envolvidas.</p><p>Para confirmar o papel das microvesículas, eles isolaram essas MVs liberadas pelas células Neuro2A e analisaram seu conteúdo, tanto protéico quanto lipídico procurando por 2-AG. Além disso, levaram suas descobertas para um cenário mais próximo do real, usando fatias de tecido cerebral (hipocampo) para ver se os mecanismos identificados funcionavam em um ambiente mais complexo e se afetavam a comunicação entre neurônios (plasticidade sináptica), sendo para isso realizada técnica de eletrofisiologia. Um modelo matemático também foi criado para ajudar a entender a dinâmica e os passos mais importantes desse processo.</p><p>Os resultados foram bastante reveladores e confirmaram a hipótese central. O sistema de co-cultura funcionou: as células remetentes liberaram algo que ativou o sensor nas células receptoras quando estimuladas, e essa liberação dependia da enzima que produz o 2-AG, a diacilglicerol lipase (DAGL). O mais importante foi que substâncias que bloqueiam a liberação de microvesículas (como aquelas que afetam a proteína Arf6) reduziram significativamente esse sinal. Ao analisar as microvesículas isoladas, eles encontraram 2-AG em seu interior, e a quantidade de 2-AG nas vesículas aumentava com o estímulo, que era feito com ATP, ativando assim os receptores P2X7 nas células Neuro2A. A inibição da produção de 2-AG resultou em menos 2-AG nas MVs, enquanto a inibição da liberação das vesículas resultou em menos vesículas liberadas e, consequentemente, menos 2-AG no ambiente extracelular. Os experimentos em fatias de cérebro também mostraram que bloquear esses mecanismos afetava a sinalização de endocanabinoides na prática.</p><p>Os impactos desses resultados são significativos para a neurociência e além. A descoberta de que as microvesículas extracelulares atuam como carreadoras de 2-AG muda fundamentalmente nossa visão sobre como os endocanabinoides se movem no cérebro. Isso sugere que as microvesículas são participantes ativos na comunicação célula-célula, capazes de transportar informações importantes, como o estado metabólico de uma célula, para outras células próximas ou distantes. O modelo proposto, que eles chamam de "modelo de liberação sob demanda", integra a produção e a liberação de endocanabinoides via microvesículas, fornecendo um arcabouço molecular muito mais completo para entender o tráfego do sistema endocanabinoide.</p><p>A discussão no artigo aprofunda esses achados, detalhando o modelo de liberação sob demanda em etapas que vão desde a ativação da célula, o brotamento das MVs da membrana, o conteúdo de 2-AG nas microvesículas em formação (um processo que envolve a produção de 2-AG e seu transporte para a membrana), a separação da microvesícula da célula, até sua eventual remoção.</p><p>Essa compreensão detalhada é crucial. Do ponto de vista médico e farmacológico, essa descoberta abre portas para o desenvolvimento de uma nova geração de medicamentos. Se entendemos como podemos modular a etapa específica da liberação de endocanabinoides via microvesículas, podemos ter uma nova forma de controlar a atividade do sistema endocanabinoide. Isso é particularmente relevante para o tratamento de condições como dor crônica, epilepsia, transtorno do espectro autista e doenças neurodegenerativas, onde a modulação do sistema endocanabinoide é um alvo terapêutico. Atuar na liberação, em vez de apenas nos receptores ou enzimas, pode oferecer maior especificidade e potencialmente menos efeitos colaterais. Os autores também especulam que a anandamida, outro endocanabinoide importante que não foi encontrado nas microvesículas neste estudo, pode ter um papel de sinalização mais intracelular ou ser transportada por outro tipo de vesícula, sugerindo que diferentes endocanabinoides podem usar mecanismos de transporte distintos para cumprir suas funções específicas. Acesse o artigo na íntegra <a target="_blank" rel="noopener noreferrer" href="https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.2421717122?url_ver=Z39.88-2003&amp;rfr_id=ori%3Arid%3Acrossref.org&amp;rfr_dat=cr_pub++0pubmed">aqui.</a>&nbsp;</p>
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