Rastros da história da planta de cannabis

  • Redação
Atualizado: 11 abril, 2025 11:56

A relação entre a humanidade e a planta é multifacetada, complexa e longa, percorrendo continentes e milênios

Por Carolina Jácomo
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Desde sua origem na Ásia Central até sua disseminação pela Europa, África e Américas, a planta foi cultivada, reverenciada e utilizada por suas propriedades singulares, que iam desde a produção de fibras industriais até aplicações medicinais e rituais. Ao longo da história, cada civilização desenvolveu formas específicas de interagir com a planta, moldando tanto suas práticas quanto suas percepções sociais.
Neste artigo, exploro essa interação histórica, destacando a chegada da maconha ao Brasil e o impacto do proibicionismo sobre a planta. Evidências indicam que sua domesticação teve início há mais de 2.500 anos, quando sociedades antigas reconheceram o valor de suas fibras resistentes e propriedades medicinais. Desde então, a planta se espalhou pelo mundo, assumindo diferentes significados e usos à medida que adentrava novas culturas.
Na Europa, a cannabis, especialmente o cânhamo, desempenhou um papel essencial na indústria naval e têxtil. Suas fibras eram empregadas na confecção de cordas, velas de navio e vestuário, desde o Império Romano, impulsionando as economias marítimas de países como Inglaterra, França, Holanda, Portugal e Espanha em suas expansões coloniais. Por outro lado, no Oriente, em nações como China e Índia, o uso da planta era predominantemente medicinal e ritualístico. Na Índia, a cannabis era consumida em cerimônias religiosas e em bebidas como o bhang, enquanto na China, seus extratos medicinais eram registrados em textos médicos antigos e em sua farmacopeia. Na África, o consumo fumado da cannabis, especialmente em cachimbos, se popularizou e permanece uma prática comum até os dias atuais, com laços profundos com as tradições culturais e religiosas do continente.

A introdução da cannabis no Brasil

A cannabis chegou ao Brasil por duas vias distintas. Em primeiro lugar, foi trazida pelos europeus como cânhamo durante o período colonial. As potências marítimas europeias, como Portugal, utilizavam a planta principalmente para suprir suas frotas com cordas e velas, essenciais para a indústria naval e a expansão colonial. Nos séculos 18 e 19, a Rússia era um dos maiores produtores mundiais de cânhamo, fornecendo grandes quantidades para as demais nações marítimas. As marinhas portuguesa e brasileira dependiam dessa matéria-prima, a ponto de a Coroa promover o cultivo do cânhamo por meio da distribuição de sementes e guias de cultivo para agricultores brasileiros.
A segunda via ocorreu com a chegada de africanos escravizados, que trouxeram consigo séculos de conhecimento sobre o uso terapêutico, social e ritualístico da maconha. Embora não haja evidências históricas de que sementes da planta foram deliberadamente transportadas por eles durante a travessia transatlântica - devido às condições desumanas do tráfico de escravos -, os africanos introduziram suas tradições culturais associadas ao consumo da planta. No Brasil, esses costumes, principalmente o consumo fumado da cannabis, conhecido popularmente como "diamba" ou "pango", se difundiram por diferentes regiões.

A cannabis na medicina ocidental e sua disseminação

A segunda metade do século 19 testemunhou a ampla adoção da cannabis para uso medicinal. Produtos como tinturas e extratos eram frequentemente prescritos para tratar diversas enfermidades. Médicos franceses e ingleses difundiram na Europa as propriedades medicinais de preparações à base de cannabis e haxixe, e laboratórios exportaram medicamentos derivados da planta para várias partes do mundo, incluindo o Brasil. Neste país, a planta era vendida em farmácias sob a forma de extratos e tinturas, e cigarros, como os renomados Cigarros Índios de Grimault, utilizados no tratamento de doenças respiratórias, desde asma até convulsões infantis. Revistas médicas relatavam os benefícios obtidos pelos pacientes que faziam uso desses produtos, tratando condições como histeria, reumatismo, gota, enxaqueca, entre outras.
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Foto: Anúncio dos cigarros índios de Grimault & Cia, no Diário do Rio de Janeiro, em 1874.

Proibição e racismo: a criminalização da cannabis no Brasil

Apesar dos inúmeros benefícios da cannabis, o Brasil foi uma das primeiras nações a proibir seu uso. Em 1830, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro instaurou a primeira proibição da planta, medida que se estendeu por outros municípios e províncias de norte a sul do país ainda no século XIX. Essa proibição foi motivada por razões fortemente racistas. A associação da cannabis ao uso africano a demonizou como uma substância perigosa, ao passo que seus usos validados pelo conhecimento europeu, tanto nas indústrias naval e têxtil quanto na medicina através de preparados, continuaram sendo aceitos e incentivados.
Médicos e intelectuais do início do século XX, como José Rodrigues Dória e Francisco Iglésias, dentre outros, disseminaram um pânico moral ao afirmar que a cannabis, consumida por negros e mestiços, conduzia à criminalidade, insanidade e decadência social. Esses discursos higienistas e racistas foram fundamentais para justificar a repressão e exclusão da planta, culminando em sua proibição federal no Brasil durante a década de 1930. Paralelamente, o consumo de "diamba" ou "pango" pelos africanos escravizados e suas comunidades tornou-se alvo de constantes perseguições pelas autoridades, que encaravam o uso da planta como uma ameaça à ordem social e moral.

A Redescoberta da cannabis na contemporaneidade

Após décadas de repressão e marginalização, a sociedade vivencia um processo de redescoberta acerca do potencial e versatilidade da popularmente conhecida maconha. Sua biologia tem sido extensivamente estudada visando aplicações na indústria, servindo como matéria-prima para a produção de fibras têxteis, celulose, revestimentos automotivos, construção civil, bioplásticos, alimentação, biocombustível, isolamento térmico e acústico, produtos de higiene e beleza, entre outros. Na esfera medicinal, as pesquisas ganham cada vez mais destaque, devido à eficácia comprovada da cannabis no tratamento de diversas condições, como epilepsia, dores crônicas, ansiedade, depressão, esclerose múltipla, Parkinson, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), glaucoma, distúrbios do sono, doenças inflamatórias intestinais (DII) e na promoção de qualidade de vida para pacientes em tratamento contra o câncer.
Embora o caminho rumo à completa descriminalização e legalização da planta ao redor do mundo seja desafiador, os alicerces dessa transformação já foram lançados. A cannabis, que ao longo da história foi símbolo de resistência e inovação, continua sendo uma ferramenta poderosa, desafiando normas sociais e fomentando avanços tanto tecnológicos quanto médicos. A trajetória da maconha na história da humanidade, especialmente no Brasil, revela não apenas seu potencial, mas também as dinâmicas sociais e políticas que distorceram sua percepção pública. Ela foi uma fibra essencial durante o período colonial e um medicamento amplamente empregado, além de integrar a cultura africana, sendo reprimida a ponto de se tornar uma substância banida. A cannabis reflete as intrincadas interações entre cultura, economia e política.
Referências:
MAIA, GUSTAVO. A Maconha no Brasil através da imprensa: cânhamo, cannabis, pango e diamba nos jornais antes da proibição (1808-1932). Editoria Vista Chinesa, Rio de Janeiro, 2023.
23ª aula da XI edição do curso de Cannabis Medicinal na UNIFESP/Movrecam: A Cannabis sativa L. na mídia - Gustavo J. C Maia
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Fonte: Cannabis Monitor.
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