Uma década de regulação, uma década de evidências

  • Redação
Atualizado: 26 maio, 2025 17:59
<p>Em maio de 2025, o Brasil completou dez anos desde a publicação da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 17/2015 da Anvisa, que permitiu a importação excepcional de medicamentos à base de canabidiol (CBD). Este marco regulatório foi um divisor de águas. Agora, uma década depois, o campo da Cannabis medicinal se consolidou, tanto em termos científicos quanto clínicos — ainda que alguns desafios persistam.</p> <h2><strong>A explosão de pesquisas científicas sobre Cannabis</strong></h2> <p>Se há um campo que avançou de forma inequívoca desde 2015, é o da pesquisa científica sobre Cannabis. <a href="https://norml.org/blog/2024/12/23/analysis-over-35000-scientific-papers-published-about-cannabis-during-the-past-decade/" target="_blank" rel="noopener">Segundo dados da PubMed, mais de 70% dos estudos sobre Cannabis foram publicados após 2014</a>, a maioria com foco nos efeitos clínicos da planta — um reflexo direto de mudanças legais e do crescente interesse terapêutico.</p> <p>Hoje, o PubMed cataloga mais de 49.500 estudos sobre Cannabis, abrangendo desde pesquisas históricas do século XIX até ensaios clínicos contemporâneos. Paul Armentano, vice-diretor da organização NORML, destaca que o crescimento da produção científica <em>“desmente a ideia de que a Cannabis carece de base científica”</em> e reforça que o debate público deve ser <em>“guiado por dados, não por mitos”</em>.</p> <h2><strong>O Brasil na linha de frente da produção científica na América Latina</strong></h2> <p>Um panorama da produção científica global foi traçado pelo CTCANN – Centro de Tecnologia e Inovação da Cannabis, em parceria com a ABICANN<a href="https://abicann.org/wp-content/uploads/2025/05/Analise-Sistematica-Global-da-Producao-Cientifica-sobre-Cannabis-nas-Principais-Bases-de-Dados-010525.pdf" target="_blank" rel="noopener">. A pesquisa, que analisou mais de 10 mil artigos publicados entre 1990 e 2025, identificou que o Brasil é o líder latino-americano em volume de estudos e ocupa o 8º lugar no mundo.</a></p> <p>Thiago Ermano, pesquisador e revisor do CTICANN, destaca que há evidências robustas em determinadas condições — como epilepsias pediátricas refratárias, náuseas induzidas por quimioterapia,<a href="https://www.cannabisesaude.com.br/revisao-bibliografica-cannabis-dor-cronica/" target="_blank" rel="noopener"> dor crônica</a> e espasticidade em <a href="https://www.cannabisesaude.com.br/cannabis-no-tratamento-da-esclerose-multipla/" target="_blank" rel="noopener">esclerose múltipla</a> — sustentadas por ensaios clínicos randomizados e meta-análises.</p> <p>Ainda de acordo com a pesquisa, em áreas como saúde mental, Alzheimer, Parkinson e doenças inflamatórias, os dados são promissores, mas insuficientes para conclusões clínicas definitivas.</p> <p>O levantamento aplicou critérios metodológicos que avaliou o tipo de estudo, nível de evidência, país de origem e os canabinoides analisados. <em>“O Brasil tem uma das maiores bases científicas sobre o uso medicinal da Cannabis no mundo, com grupos de excelência em universidades públicas. O problema não é a ciência — é a falta de políticas públicas integradas e orientadas por evidências”</em>, afirma Ermano.</p> <p>Universidades como a USP (Universidade de São Paulo), a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) estão entre as principais responsáveis pela produção científica no país.</p> <h2><strong>Regulação e acesso: avanços consistentes, gargalos persistentes</strong></h2> <p>Os números refletem uma evolução consistente desde 2015. Segundo o 3º Anuário da Cannabis Medicinal no Brasil, em 2024 o país chegou à marca de 672 mil pacientes em tratamento, com cobertura em mais de 80% dos municípios — um crescimento de 56% em relação ao ano anterior.</p> <p>A maior parte dos pacientes utiliza produtos importados via RDC 660, que ainda representam a principal porta de entrada dos derivados de Cannabis no Brasil. Isso porque a produção nacional continua sem regulamentação, o que limita o acesso, encarece os tratamentos e dificulta a presença da Cannabis medicinal em regiões afastadas.</p> <p>Com o fim do prazo determinado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) para o governo se posicionar sobre o cultivo doméstico, a pressão por uma regulamentação definitiva aumentou. Em resposta, a Advocacia-Geral da União (AGU) apresentou um Plano de Ação interministerial, propondo regras para a produção e fiscalização da Cannabis de baixo teor de THC no país. A medida pode abrir caminho para políticas públicas mais estruturadas e ampliar o acesso de forma segura e legal — <a href="https://www.cannabisesaude.com.br/plano-de-acao-agu-producao-de-cannabis-brasil/" target="_blank" rel="noopener">tema que detalhamos nesta matéria.</a></p> <h2>&#8220;A questão já não é se funciona — e sim como aplicar&#8221;</h2> <p><a href="https://www.cannabisesaude.com.br/vinicius-mesquita-cannabis-resultados/" target="_blank" rel="noopener">Para o Dr. Vinicius Mesquita, médico especialista em medicina canabinoide com milhares atendimentos na área,</a> o avanço da ciência nos últimos dez anos transformou completamente o cenário. “<em>Quem ainda diz que Cannabis ‘não tem evidência’ está preso em 2010. Só na última década, foram milhares de estudos publicados. . A maturidade da pesquisa é clara&#8221;</em>, afirma.</p> <p>Entre os marcos mais robustos, ele cita a eficácia do CBD isolado em epilepsias refratárias — com até 40% de redução nas crises, segundo o New England Journal of Medicine — além de dados consistentes para dor crônica (com evidência moderada, segundo a JAMA) e espasticidade em esclerose múltipla (com extratos como o nabiximols).</p> <p>Sobre segurança, o médico é direto: os efeitos adversos são geralmente leves — como sonolência, tontura e diarreia — e podem ser manejados clinicamente. <em>“Hoje, a pergunta não é mais ‘será que funciona?’, mas sim ‘qual dose? qual via? qual quimiovariedade para qual paciente?’”</em>, resume. “<em>A Cannabis medicinal saiu do improviso e entrou no protocolo. E isso é fruto direto da ciência. </em><em>O corpo de evidência já é robusto, respeitado, indexado. O que falta não é paper”, diz. </em></p> <h2>CFM e a regulamentação médica: um impasse que ainda persiste</h2> <p>Apesar dos avanços científicos e da prática clínica consolidada, o Brasil ainda enfrenta um vácuo regulatório no campo médico, mantido pelo impasse no CFM.</p> <p>Em outubro de 2022, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução nº 2.324/2022, que restringia de forma significativa a prescrição de medicamentos à base de Cannabis, como o canabidiol (CBD). Segundo o texto, a indicação médica ficaria limitada a três condições específicas: Síndrome de Dravet, Síndrome de Lennox-Gastaut e Complexo de Esclerose Tuberosa — todas formas graves de epilepsia.</p> <p>Além disso, a norma proibia médicos de ministrarem palestras ou cursos sobre o tema. A medida gerou reações imediatas de pacientes, especialistas e entidades da saúde. A repercussão levou o CFM a suspender temporariamente a resolução poucos dias depois, sem, no entanto, estabelecer uma nova diretriz em seu lugar.</p> <p>Desde então, a prescrição de Cannabis medicinal permanece em uma espécie de limbo jurídico. Não há hoje uma regulamentação vigente do Conselho que oriente os médicos sobre como, quando e para quem prescrever esses medicamentos. A resolução anterior, de 2014, também não está mais em vigor, o que acentua o cenário de indefinição.</p> <p>Em resposta recente, o CFM afirmou estar debatendo o tema internamente e participando de discussões externas, como audiências públicas no Senado. Também foi realizada uma consulta pública sobre o assunto, que recebeu 7.852 contribuições. No entanto, o resultado dessa consulta ainda não foi divulgado.</p> <p>Enquanto isso, médicos seguem utilizando sua autonomia para prescrever — com base nas evidências disponíveis, na demanda clínica e nas normativas da Anvisa. Mas a ausência de uma norma atualizada do órgão máximo da medicina mantém um clima de indefinição, especialmente para profissionais que atuam em redes públicas ou instituições com diretrizes mais restritivas.</p> <h2>Um futuro promissor</h2> <p>A ciência brasileira sobre Cannabis está viva, pulsante e produtiva. Mas seu impacto depende cada vez mais da capacidade institucional de transformar conhecimento em política pública. Para os pesquisadores do CTCANN, o país tem potencial para se destacar não apenas na produção acadêmica, mas também em uma cadeia produtiva estruturada e inovadora — integrando pesquisa, cultivo, indústria e distribuição.</p> <p>O desafio, agora, é sair da exceção e alcançar a regra. Dez anos depois da RDC nº 17, a Cannabis medicinal já é parte da realidade de milhares de brasileiros. Falta apenas que as instituições acompanhem essa realidade com a regulação que ela exige.</p>
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